quinta-feira, 12 de julho de 2007

Quero morrer com saúde

Quer saber até que ponto nos permitimos a invasão e liberdade incondicional dos médicos em nossos corpos e vidas? Volte à infância e pense naquela velha e proibida brincadeira: brincar de médico. Quer dizer, tudo aquilo que envolvia sexualidade era tabu, proibido, e a gente inventava ou aprendia o brincar de médico pra ter licença, pelo menos a dois, de mexer aonde não era permitido. Então, a própria existência dessa cultura do brincar de médico, ligado à infância, às piadas dos adultos, dá uma idéia de como essa licença, geralmente necessária, em alguns momentos nos despe, literalmente, de toda dignidade, sob os mais variados falsos pilares: quando se está doente ou precisando dos serviços médicos se deve deixar a vergonha e a vaidade de fora (e ponham-se nossas vergonhas e partes expostas em corredores cheios de olhares curiosos); a vida é mais importante do que zelos bobos; ou nada deve atrapalhar os procedimentos.
Bem, se alguém nunca passou por necessidades hospitalares, não captou talvez ainda o porque de eu escrever isso. Quem já passou deve ter entendido o espírito do texto bem no começo. Mas, para ser mais preciso, gosto sempre de contar casos pessoais reais para mostrar como a dignidade e a individualidade, tão importantes em toda nossa vida, podem ser desrespeitadas nesses ambientes. Uma vez estava em casa enquanto minha mãe estava, teoricamente, sendo submetida a uma mastectomia parcial, para retirada de um nódulo. A certa altura, ela liga pra casa e me pede pra ir buscá-la, pois não tinha feito a tal cirurgia. Me visto e me apresso meio tenso e curioso. Como não tinha carro ainda, tive mais tempo nos ônibus para aguentar a curiosidade. Cheguei no hospital e me dirigi à enfermaria que me indicaram. No caminho, pessoas as mais diversas, de todas as idades, me chocavam. E não chocavam porque estavam doentes. Mas porque, além disso, elas estavam mal cuidadas na sua aparência. Andando por corredores com aquela bata fina e ridícula, que deixa as costas aparecendo, até às nádegas. Quartos abertos sem biombo, de onde podia ver pacientes já mortos em sua dignidade, seu direito à intimidade.
Cheguei ao quarto onde estava minha mãe e a encontrei assanhada, de camisola, parecendo mesmo uma moribunda, embora ela estivesse saudável, com exceção do tal nódulo. Aquilo foi um choque pra mim. Minha mãe, a professora Maria Alves, sempre arrumadinha, daquele jeito? Não havia motivos. Tratei logo de resgatá-la daquele ambiente funesto. Pegamos suas coisas e fomos embora, de ônibus. No caminho, ela me contou que, já na mesa de cirurgia, um médido com aparência caquética se aproximou já de bisturi na mão. Ela indagou pela cirurgiã que acreditava fosse fazer a intervenção, e a resposta foi, como costuma ser nesses ambientes, tosca. Não se pode questionar esses profissionais! Como pode? Mas minha mãe foi mais forte do que eu até então achava que ela fosse. Levantou-se e disse que não faria a cirurgia. A volta do hospital, onde ela me contou os detalhes e comentou a cara de espanto da equipe, foi um dos melhores momentos que já passamos juntos. Rimos muito durante o percurso.
Algum tempo depois, assistida por algum profissional mais capaz, ela debelou o problema apenas com medicação. E não precisou mesmo fazer a cirurgia. Não tenho certeza de quando foi agora, mas isso faz pelo menos uns 15 anos. Minha mãe agora tem 72 anos, e nunca mais teve esse tipo de problema.
Eu, em cirurgia recente (no braço esquerdo), não permiti que me levassem por vários corredores e andares do hospital, vestido apenas com ridículas roupas de tecido descartável transparente, passando por salas de espera e de visita, como se ao entrar ali para ser submetido a tão nobre e imprescindível ato profissional, deixasse toda minha individualidade lá fora. Exigi subir com minha linda cuequinha preta "de marca" (não é cavada não, ô!) para motivos especiais (não exatamente esses), apropriadamente higienizada para não comprometer o ambiente.
Por esses e outros motivos, pessoas que precisaram estar, como pacientes ou parentes, por muito tempo nesses ambientes, têm uma identificação rápida com a mensagem do filme "Patch Adams, o amor é contagioso".
Então, precisamos estar sempre vigilantes nesses ambientes. Deixar ou precisar se submeter aos cuidados dos profissionais de saúde nunca deve ser licença para que nos tirem a dignidade, o devido cuidado pessoal, o zelo pela nossa intimidade. E isso vai muito além dessa aparente bobagem da vaidade com a aparência ou da vergonha de ser exposto desnecessariamente. Isso também tem a ver com o modo como as intervenções são feitas. Tenho nos meus braços, à guisa da necessidade premente do socorro após acidente, cicratizes feias, resultado do trabalho de um médico mal e recém formado, que me costurou como se fecha um saco de batatas. Dizem: "Se escapou de morrer, isso é o mais importante". Mas o costurador de presuntos fez pior: deixou um fragmento de vidro dentro do nervo ulnar, comprometendo a recuperação para sempre, causando inclusive a formação de um neurona que foi descoberto um ano depois. Eu não daria um murro nele se o visse. Não com a mão esquerda, porque ficou eternamente doída e mais fraca. Mas a direita ainda arrebenta uma porta.

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